
Débora Lucas
"De todos os meios de expressão, a fotografia é o único que fixa para sempre o instante preciso e transitório.” (Henri Cartier-Bresson)
O acervo fotográfico da família Leal, localizado em um armário na sala da casa, guarda os momentos mais importantes da história da família, desde a adolescência de Maria Célia e José Eduardo Leal até o nascimento e crescimento de seus três filhos: Luciana, Júlia e Eduardo.
O acervo fotográfico da família Leal, localizado em um armário na sala da casa, guarda os momentos mais importantes da história da família, desde a adolescência de Maria Célia e José Eduardo Leal até o nascimento e crescimento de seus três filhos: Luciana, Júlia e Eduardo.
Várias caixas com fotos, em sua maioria dentro dos álbuns dos laboratórios de revelação. Retratos de casamento, lua de mel, nascimento dos filhos, comemorações de aniversários, festas escolares e formaturas. Registros de momentos corriqueiros, como passeios de fim de semana e na própria casa da família. Para Célia, as fotografias documentam a história da família e têm um valor sentimental muito grande, devido às recordações que trazem.
Quatro álbuns ocupam lugar de destaque dentro do armário. São grandes e com capa de couro. Neles estão fotos do casamento, da infância de cada um dos filhos, dos partos, dos batizados e das primeiras festas de aniversário. Nota-se o carinho e entusiasmo que transmitem ao olhar e falar sobre essas fotografias. Porém, o acervo possui poucas fotos atuais. Com o advento da máquina digital, os retratos não são mais revelados e ficam armazenados no computador.
Fotografia e Contexto
“Viajar ao lado de uma pessoa especial e para um lugar especial pode trazer recordações emocionantes”. Essa foi uma das considerações que Célia e Eduardo Leal fizeram em relação à viagem que realizaram juntos ao Peru em 1983, um ano antes de se casarem. A foto escolhida como base do presente estudo originou-se dessa viagem.
Situado no oeste da América do Sul, às margens do Oceano Pacífico Sul, entre Chile e Equador, o Peru possui variedade de temperaturas, paisagens e ecossistemas. Além disso, é um dos três países das Américas em que os povos indígenas constituem a maioria da população, os outros dois são a Bolívia e a Guatemala. Quase metade de todos os peruanos, 45% da população, são ameríndios. Na costa quase nunca chove e, em geral, existem duas estações: a quente e a fria.
Durante a viagem, o casal visitou Cuzco, onde conheceram a beleza de Machu Picchu e Huayana Picchu, além da capital boliviana La Paz e da cidade de Puno, na divisa entre os dois países. O passeio, previsto para 15 dias, durou 11, pois consideraram a viagem muito bela, mas extremamente cansativa.
A fotografia escolhida e transformada em objeto de análise foi tirada em nas ruínas de Tambomachay, em Cuzco, sob o sol da manhã. As pessoas que aparecem na imagem: um casal de americanos, cuja mulher estudava medicina em Lima e o homem que foi à passeio. Também um casal de alemães, ela dentista e ele fotógrafo, além de Mait, um homem alemão que morou no Brasil, na cidade de Curitiba. Essas pessoas ficaram amigas de Célia e Eduardo e passaram quase toda a viagem juntos do casal.
O turismo na cidade de Cuzco intensificou-se nos anos de 1990 e tornou-se o principal destino no Peru. A infra-estrutura para os turistas é bastante diversificada, oferecendo desde hotéis de luxo a albergues com diárias a US$4.
O centro urbano de Cuzco, que conserva belíssimos casarões coloniais, foi declarado pela Unesco, em 1983, como Patrimônio Mundial.
Fotografia: documento e memória
A autonomia semiótica da imagem parece questionável ao analisarmos contextos em que o texto é essencial para a compreensão do todo. Nesse caso, podemos entender que sem a linguagem verbal, a imagem não se explica por si só. Na realidade, a polissemia imagética pode gerar conflitos interpretativos e, por isso, o texto se faz necessário. Apresentar a fotografia proposta e esperar análise objetiva e única seria ignorância plena. Já que a informatividade de uma imagem isolada varia de acordo com o indivíduo que a observa, afirma-se, portanto, a subjetividade presente em tal análise superficial.
Ao retomar a imagem de 24 anos atrás, o casal revive as sensações daquele tempo. Para eles, a interpretação da imagem está ligada diretamente ao sentimento do passado e da viagem como um todo. Afirmar-se-á, claramente, a conservação e retomada da memória por meio da fotografia.
Considerando a realidade presa na imagem e não no mundo concreto, entende-se a aparência duplicada pela fotografia. A fotografia de 1983 não retrata mais apenas a realidade, mas uma memória perpetuada. A velha imagem revive, ao representar para uma família, um indivíduo a contextualização e impressão da memória.
A partir de Goodman (1968) e Muckenhaupt (1986:48), descreve-se a fotografia escolhida da seguinte forma:
Peru, Cidade de Cuzco, março de 1983 (segundo marcação na fotografia), algumas pessoas reunidas. Se não houvesse a datação na fotografia, seria possível identificar que a foto não é atual, a partir das vestimentas. Podemos dizer também que aquelas pessoas chegaram ali no ônibus que aparece na imagem, além de um carro estacionado logo ao lado.
A descrição dessa forma chama-se denominação ou etiquetamento, proposta dos autores anteriormente citados, e trata-se de uma das funções do texto ao complementar a imagem.
Sob o caráter documental, a fotografia é memória (Kossoy, 2007) pois configura-se como registro aparente. O perfil indicial, porém, será traçado com base no conhecimento subjetivo carregado pelo espectador. A apresentação da mesma imagem selecionada para alguém que conhece detalhadamente o Peru e a cidade de Cuzco, além de sua história e economia, levantaria questões aprofundadas e talvez ocorresse da seguinte forma:
Peru, Cidade de Cuzco, 1983. A paisagem ao fundo configura-se como representação arquitetônica do povo Inca, que habitou a região entre os anos de 1200 e 1533, quando foram exterminados pelos colonizadores espanhóis.
Outras inúmeras interpretações seriam possíveis, visto que cada um enxerga a imagem de uma forma. Mas o papel da fotografia enquanto perpertuação da memória é essencial para questionarmos sua função documental. A fragmentação do tempo e espaço em uma imagem é o que cria a polissemia imagética.
“Uma única fotografia e dois tempos: o tempo da criação, o da primeira realidade, instante único da tomada do registro no passado, num determinado lugar ou época, quando ocorre a gênese da fotografia; e o tempo da representação, o da segunda realidade, onde o elo imagético, codificado formal e culturalmente, persiste em sua trajetória na longa duração. (...) Trata-se, pois, de uma memória finita.” (Kossoy,2007)
A volatilidade do tempo da criação só pode ser recuperada na representação, por meio da memória. Talvez por isso, a função documental da fotografia seja questionável, já que depende da memória para a plenitude da representação. Sendo a memória um elemento mutável e instável, forjar a representação torna-se muito fácil. Porém, não mais fácil do que pelos “tratamentos digitais” que a modernidade nos trouxe.
Partindo do quadro estático e bidimensional que é a fotografia, iniciamos muitas vezes um longo percurso. Ela funciona como uma máquina que nos permite voltar ao passado. Ao tornar-se perene, ao ser seu próprio contínuo, a fotografia nos transporta de um tempo cronológico a um tempo memorial afetivo, onde as lembranças fixadas na imagem substituem pessoas e acontecimentos reais que se perdem. Nessa viagem, no entanto, levamos o presente: nosso modo de ver, nosso corpo, nossa vivência. A subjetividade de nosso olhar constrói novos significados, transformando, com freqüência, imagens aparentemente inalteráveis. (Creus,2002)
O jornalismo, assim como a publicidade, dilui a imagem ao intensificar o seu uso. Nesse meio, muito se aproveita dos múltiplos sentidos propostos em uma fotografia para construção de argumentos. Manipulações e alteração do sentido de uma imagem, a partir da desconecção dos tempos, geram ilustrações vazias, sem vínculo espacial/temporal (Kossoy,2007)
Assim, tanto as imagens desconectadas do tempo, como aquelas guardadas nas caixas do acervo da família Leal, passam a ser vistas simbolicamente, “situção típica do processo de criação/construção de realidades” (Kossoy,2007). A espetacularização da sociedade não sustenta mais apenas o fato pelo fato.
Porém:
“A realidade está nas imagens, não no mundo concreto, pois este é efêmero e aquela, perpétua. A realidade das imagens é a da aparência do duplo, dos corpos possuídos ou tomados do real, substitutos de seus modelos em escala real, tridimensional; simulacros que, no espaço e no tempo, passam a ocupar o seu papel de vida eterna, posto qu infinitos na duração.” (Kossoy, 2007)
Dessa forma, a partir do momento em que reciclamos ou revivemos a memória presa em uma fotografia, construímos nova memória. As memórias revividas assemelham-se a um novo ciclo da imagem que havia perdido a identidade, esquecida em um álbum ou descontextualizada como ilustração. Ocorre, portanto, uma reinterpretação sob o processo de construção de realidades, onde se reafirma que:
“O mundo das imagens é um mundo em si mesmo, transcorre paralelo ao mundo real; numa outra dimensão...” (Kossoy, 2007)
Um comentário:
Que bom que curtiu !
Obrigada pela visita ;)
*Dj Blush*
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